Vírus Sabiá (SABV), causador da febre hemorrágica brasileira, foi detectado em Cotia, em 1990.
Um surto de febre amarela, ocorrido em 2019 na região Sudeste, desencadeou uma nova pesquisa realizada em coparticipação pelo Instituto de Medicina Tropical (IMT) e o Hospital das Clínicas (HC), ambos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Dois novos casos de infecção pelo vírus sabiá (SABV), detectado em Cotia nos anos 90, aprofundou a investigação sobre esse agente causador da febre hemorrágica brasileira. Antes, apenas quatro infecções desse tipo haviam sido detectadas no País, a última delas, há mais de 20 anos.
“Fizemos esse estudo durante a epidemia de febre amarela, então nos casos em que não conseguimos fechar o diagnóstico, fomos atrás de outros vírus”, explica a médica Ana Catharina Nastri, da Divisão de Doenças Infecciosas do HC-FMUSP. “Para nossa surpresa, achamos esses dois casos, que são extremamente raros.” Segundo ela, os avanços na anatomia patológica, especialmente na microscopia eletrônica, permitiram um estudo mais aprofundado sobre o Brazillian mammarenavirus, ou vírus Sabiá, trazendo novas informações a respeito de suas manifestações clínicas, histopatologia e possibilidade de transmissão hospitalar. Os achados foram publicados em artigo na revista Travel Medicine and Infectious Disease, em maio deste ano, tendo a médica Nastri como primeira autora e orientação da professora Ana S. Levin, do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da FMUSP.
Vírus Sabiá O nome do agente patogênico é uma referência ao bairro Sabiá, localizado no município de Cotia, onde suspeita-se que a primeira vítima tenha sido infectada. Embora existam vários tipos de Mammarenavirus descritos em diferentes países da América do Sul, o SABV é característico do Brasil. “Alguns desses vírus possuem o ciclo viral mais bem conhecidos, já o nosso vírus sabiá possui pouquíssimos dados”, diz a médica. “Ainda não sabemos qual é o seu reservatório na natureza, a forma de transmissão, e se existiria infecção através do contato inter-humano.”
Previamente ao estudo, apenas quatro infecções por SABV haviam sido registradas. Ao que tudo indica, uma delas ocorreu na cidade de Cotia, em 1990, e outra, na cidade do Espírito Santo do Pinhal, em 1999, ambas localizadas na zona rural do Estado de São Paulo. Nos dois casos, o contágio acometeu trabalhadores rurais que vieram a falecer em decorrência de complicações da febre hemorrágica. As outras duas infecções ocorreram em trabalhadores de laboratório que, provavelmente, foram infectados enquanto manipulavam o vírus. Ambos sobreviveram.
"Caso A e Caso B” Os dois novos casos detectados, chamados no estudo conduzido no Hospital das Clínicas de “Caso A e Caso B”, ocorreram nas cidades de Sorocaba e Assis (no interior de São Paulo), respectivamente, e ambos os pacientes foram admitidos no Hospital das Clínicas (HC) com hipótese diagnóstica de caso grave de febre amarela. O primeiro foi um homem de 52 anos que havia caminhado pela floresta na cidade de Eldorado (170 quilômetros ao sul de São Paulo) e passou a apresentar sintomas como dor muscular, dor abdominal e tontura. No dia seguinte, ele desenvolveu conjuntivite, sendo medicado em um hospital local e depois liberado. Quatro dias depois, foi internado novamente com febre alta e sonolência. Suspeitou-se de febre amarela e ele foi transferido para o Hospital das Clínicas.
Durante a internação, seu quadro clínico foi agravado até ele ser transferido para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), dez dias após o início dos sintomas, com sangramento significativo, insuficiência renal, rebaixamento do nível de consciência e hipotensão, vindo a falecer dois dias depois. O Caso B refere-se a um homem de 63 anos, trabalhador rural de Assis (440 quilômetros a oeste de São Paulo), que apresentou febre, mialgia generalizada, náusea e prostração. Os sintomas pioraram e oito dias depois ele foi admitido no HC com depressão do nível de consciência e insuficiência respiratória com necessidade de intubação. Uma disfunção ventricular esquerda grave (redução drástica da função de bombeamento de parte do coração) levou a um choque refratário e eventual óbito, 11 dias após o início dos sintomas.
O que sabemos e o que resta saber Para realizar os diagnósticos, os cientistas utilizaram a técnica metagenômica, que permite identificar vírus ainda desconhecidos por meio da extração, replicação e eventual sequenciamento do material genético do agente infeccioso. Esse material é então comparado a outros organismos em bancos de dados de bioinformática, com informações de patógenos de todo o mundo. Ao relacionar o vírus encontrado nos pacientes com outros tipos de Mammarenavirus e verificar a compatibilidade da descoberta com a prática clínica, determinou-se que se tratava do SABV.
Na análise das duas infecções fatais do estudo, os pesquisadores identificaram sintomas análogos aos registrados nos casos da década de 90. “A parte clínica é muito parecida com o que já havíamos visto antes, e entre os dois novos casos, a manifestação também foi muito similar”, diz Ana Nastri. Em todos os casos houve um comprometimento significativo do fígado e de órgãos associados à produção de células de defesa, o que pode ter facilitado o surgimento de infecções secundárias, tornando o diagnóstico inicial mais complexo.
Quanto à geografia das infecções, os quatro casos registrados tiveram como ponto em comum infecções ocorridas na zona rural. “Inferimos, baseados nos outros Mammarenavirus da América do Sul, que provavelmente a pessoa se contamina por inalação de partículas virais, talvez de fezes de roedores. Mas isso não está comprovado justamente porque temos pouquíssimos casos descritos”, diz Ana. A médica ainda alerta que, justamente por se tratar de áreas rurais com menos recursos laboratoriais e de diagnóstico, alguns casos podem ter evadido a análise clínica, impossibilitando um panorama completo da febre hemorrágica brasileira. “Não sabemos se realmente não há casos mais leves, como na febre amarela, que possui desde o caso grave até os que não têm sintoma nenhum.”
Uma diferença importante do estudo em relação aos relatos anteriores do vírus remete à incidência de transmissão hospitalar. Os cientistas do IMT e do Hospital das Clínicas não encontraram nenhuma infecção desse tipo durante o rastreamento de contatos. “Isso mostra que com as precauções habituais, como máscara, luva, óculos e avental, não houve transmissão, e nos deixa um pouco mais tranquilos em relação ao nosso vírus”, diz Ana Nastri. Ela ressalta, entretanto, que ainda não é possível cravar uma conclusão, pois trata-se apenas de dois casos. Da Assessoria de Comunicação da FMUSP
Fotos: HCFMUSP e Wikimedia Commons
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